25/10/2010

3) Sobre as desigualdades

 


A agenda social tem se dedicado nos últimos tempos - provavelmente inspirada pelo clima de campanha eleitoral - a esboçar ideias e argumentos acerca das desigualdades sociais no Brasil.

De um lado, temos o discurso da relativização da pobreza, pautado em falas políticas e em estatísticas que mostram um decréscimo otimista da localização social de sujeitos situados nas camadas mais baixas. Comemora-se a inclusão de novos membros à chamada classe média, mas pouco se discute o que significa na prática essa migração. Decerto, os mais entusiastas do progresso nacional falarão de um aumento do poder aquisitivo, de uma relação mais promissora entre o indivíduo e o mercado. Mas, para quem acredita que o progresso está relacionado à autonomia, os instrumentos de mensuração dialogam mais com o acesso à Educação (de qualidade) do que com o poder de compra. E nisso ainda estamos atrasados, ainda que passos importantes já tenham sido dados na última década.

No outro lado do raciocínio (instrumental) sobre as desigualdades sociais no país, temos os alarmistas da pauperização total, um tanto perdidos na significação do conceito, confundindo desigualdade e pobreza econômica, forçando uma relação de sinônimos que, de fato, não existe. A falta de meios financeiros é uma das facetas da desigualdade, mas está longe de ser sua causa exclusiva.

Ouvimos muito falar no Brasil como o país da diversidade. Tal ênfase nos coloca diante da falsa ideia de valorização positiva das diferenças, fortemente pautada no ideário de democracia racial que, como sabemos, é um de nossos mitos fundadores. Nessa alusão ao paraíso perdido vamos convivendo com o outro, adotando um discurso de tolerância quando, na verdade, estamos com dificuldades para inaugurar a prática do respeito.

Respeito implica reconhecimento da alteridade, isto é, depende de um olhar receptivo às diferenças. Será que estamos preparados para assumir o que há de exótico em nós? Nos sentiremos à vontade para reconhecer familiaridades naquilo e naqueles/as que nos parecem pitorescos? Antes de nos atravermos a fornecer respostas, pensemos um pouco mais no lugar de onde falamos.

Peter Berger, um sociólogo americano, defende a ideia de que possuímos uma dupla realidade. Uma se resume à sociedade em nós; a outra nos enxerga atuando e intervindo nessa mesma sociedade. No primeiro caso, obedecemos à regras, manifestamos os resultados da nossa socialização. No segundo, temos certo poder de transformação, estamos aptos a transgredir, a alterar o rumo da história. Aliás, já dizia Marx que na origem das instituições estão os homens, sendo, pois, nós mesmos sujeitos da práxis. Então, somos marionetes que, de vez em quando, brincam de ser ventrílocos. Ou ventrílocos que, às vezes, deixam se fazer de marionetes.

Na perspectiva sociológica de Berger as desigualdades variam de acordo com a nossa localização social, isto é, quanto mais autonomia temos em relação à sociedade em nós, mais atuamos nela e melhor estaremos em sua divisão social do trabalho - para lembrar um outro conceito marxista. Em outras palavras, as desigualdades são mais  afeitas ao diferente que, na lógica capitalista, constitui-se de outsiders, de pessoas à margem.

Estar à margem não é privilégio do pobre. É também realidade do preto, da mulher, do homossexual, do índio. Enfim, é viável para todos os indivíduos que sofrem desigualdades sobrepostas. A desigualdade é uma construção social antiga, herdada, alimentada, transmitida e reinventada. Ela conta com o auxílio do preconceito, da discriminação, das clivagens entre as classes, das ideologias, das religiões e dos partidos. Conta com  o apoio de cada um de nós que delega responsabilidades ao outro generalizado, omitindo nossa parcela de contribuição direta ou indireta.

A naturalização das desigualdades foi - e ainda é - um discurso científico. O sangue azul de ontem equivale à instabilidade emocional da mulher com TPM de hoje. A ciência (equivocada), contudo, não está sozinha. Conta com alguns discursos fundametalistas de determinadas religiões, com certos veículos midiáticos e, claro, com nós mesmos e nossos preconceitos velados. E assim, "cientificamente", vamos mapeando as diferenças, exaltando a diversidade e maquiando as desigualdades. Eu aceito o outro, pratico a tolerância diante dele, mas não o integro.

No campo da Educação essa prática dialoga com um currículo oculto não contemplado na avaliação dos/as professores/as. O aluno que sofre bullying é visto como agente de uma socialização natural, quando deveria ser encarado como vítima de mais uma desigualdade - ou de várias desigualdades sobrepostas.

Porém, é mais prático relacionar desigualdades à pobreza. Talvez porque dinheiro e emprego sejam moedas mais valiosas para a compra de votos do que educação, equidade e outros Direitos Humanos. Pensar que só o pobre é desigual também alivia nossa consciência e a lógica da meritocracia justifica a culpabilização do vitimizado. E assim vamos seguindo, sem olharmos uns aos outros... “é que Narciso acha feio o que não é espelho”. 

L.N. 25/10/2010

Imagens da aula presencial do GDE em 07/10/2010
Tema: Relações Étnico-Raciais






2 comentários:

  1. Você é um monstro, Léo. Só não é sagrado por que o profano combina muito mais com você.

    O Blog é uma finesse!Parabéns!!

    Ju.

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  2. Excelente artigo. Faz com que reflitamos sobre as prioridades de nossa sociedade.

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